terça-feira, 22 de março de 2011

Convite

E quando a viola gemer nas mãos do seresteiro na rua trepidante da cidade mais agitada, não tenhas, môça, um minuto de indecisão. Atende ao chamado e vem. A Bahia te espera para sua festa quotidiana. Teus olhos se encharcarão de pitoresco, mas se entristecerão também ante a miséria que sobra nestas ruas coloniais onde começam a subir, magros e feios, os arranha-céus modernos.

Ouves? É o chamado insistente dos atabaques na noite misteriosa. Se vieres êles tocarão mais alto ainda, no poderoso toque do “chamado do santo” e os deuses negros chegarão das florestas d’ África para dançar em tua honra. Com seus vestidos mais belos, bailando os mais doidos bailados. E os yauôs cantarão em nagô os cânticos de saudação.

Os saveiros abrirão as velas e rumarão para o mar largo de tempestades. Do forte velho virá música antiga, valsa esquecida que só o ex-soldado recorda. Os ventos de Iemanjá serão apenas uma doce brisa na noite estrelada. O rio Paraguaçu murmurará teu nome e os sinos das igrejas de repente tocarão Ave-Maria apesar de que o crepúsculo já passou em sua desesperada tristeza.

Na Feira de Água dos Meninos, nos pobres pratos de flandres o sarapatel te espera, escuro e gostoso. Os potes e as moringas de barro que comprarás, as rêdes para a sesta, as inhames e aipins, as frutas coloridas. Se vieres, a feira terá outra animação, bebermos cachaça com ervas aromáticas.

Os sobradões te esperam. Os azulejos chegam de Portugal e desbocam hoje ainda mais belas. Lá dentro a miséria murmura pelas escadas onde os ratos correm, pelos quartos imundos. As pedras com que os escravos calçavam as ruas, quando o sol as ilumina ao meio-dia, têm laivos de sangue. Sangue escravo que correu sobre elas nos dias de ontem. Nos casarões moraram os senhores de engenho. Agora são os cortiços mais abjetos do mundo.

Verás as igrejas, grávidas de ouro. Dizem que São trezentas e sessenta e cinco. Talvez não sejam tantas, mas que importa? Onde estará mesmo a verdade quando ela se refere a esta cidade da Bahia? Nunca se sabe bem o que é verdade e o que é mentira nesta cidade. No seu mistério lírico e na sua trágica pobreza, a verdade e a lenda se confundem. Se subires o Tabuão, de mulheres que já perderam a última parcela de sensibilidade, nos quintos-andares de prédios aleijados, nunca saberás ao certo se é uma rua maravilhosa de pitoresco, com suas janelas coloniais e suas portas centenárias, ou se é apenas um hospital enorme, sem médicos, sem enfermeiras, sem remédios. Ah!, môça, esta cidade da Bahia é múltipla e desigual. Sua beleza eterna, sólida como em nenhuma outra cidade brasileira, nascendo do passado, rebentando em pitoresco no cais, nas macumbas, nas feiras, nos becos e nas ladeiras, sua beleza tão poderosa que se vê, apalpa e se cheira, sua beleza de mulher sensual, esconde um mundo de miséria e de dor. Môça, eu te mostrarei o pitoresco mas te mostrarei também a dor.

Vem e serei teu cicerone. Juntos comeremos no Mercado sobre o mar o vatapá apimentado e a doce cocada de rapadura. Serei teu cicerone. Mas, não te levarei, apenas, aos bairros ricos, de casas modernas e confortáveis, a Barra, Graça, Vitória e Nazaré. Iremos nos piores bondes do mundo para a Estrada da Liberdade, onde descobrirás a miséria oriental se repetindo naqueles casebres do Japão e da China, te levarei aos cortiços infames.

Êsse é bem um estranho guia, môça. Com êle não verás apenas a casca amarela e linda da laranja. Verás igualmente os gomos podres que repugnam ao paladar. Porque assim é a Bahia, mistura de beleza e sofrimento, de fartura e fome, de risos álacres e de lágrimas dolorosas.

Quando a viola gemer nas mãos do seresteiro, nascido na Bahia e cheio da sua poesia, não reflitas sequer. Môça, a Bahia te espera e eu serei teu guia pelas suas ruas e pelos seus mistérios. Teus olhos se encherão de pitoresco, teus ouvidos ouvirão histórias que só os baianos sabem contar, teus pés pisarão sobre os mármores das igrejas, tuas mãos tocarão o ouro de São Francisco, teu coração pulsará mais rápido ao bater dos atabaques. Mas, môça, estremecerás também muitas vezes e teu coração se apertará de angústia ante a procissão fúnebre dos tuberculosos na cidade de melhor clima e de melhor percentagem de tísicos do Brasil. A beleza habita nesta cidade misteriosa, môça, mas ela tem uma companheira inseparável que é a fome.

Se és apenas uma turista ávida de novas paisagens, de novidades para virilizar um coração gasto de emoções, viajante de pobre aventura rica, então não queiras esse guia. Mas se queres ver tudo, na ânsia de aprender e melhorar, se queres realmente conhecer a Bahia, então, vem comigo e te mostrarei as ruas e os mistérios da cidade do Salvador, e sairás daqui certa de que este mundo está errado e que é preciso refazê-lo para melhor. Porque não é justo que tanta miséria caiba em tanta beleza. Um dia voltarás, talvez, e então teremos reformado o mundo e só a alegria, e a saúde e a fartura caberão na beleza da imortal Bahia.

Se amas a humanidade e desejas ver a Bahia com olhos de amor e compreensão, então serei teu guia. Riremos juntos e juntos nos revoltaremos. Qualquer catálogo oficial, ou de simples cavação, te dirá quanto custou o Elevador Lacerda, a idade exata da Catedral, o número certo dos milagres do Senhor do Bonfim. Mas eu te direi muitos mais. Junto com o pitoresco e a poesia te direi da dor e da miséria.

Vem, a Bahia te espera. É uma festa e é também um funeral. O seresteiro canta seu chamado. Vou mandar que batam os atabaques e os saveiros partam em sua busca no mar. Serão a doce brisa e os ventos e as palmas dos coqueiros que te saudarão das praias.
                
          Vem, a Bahia te espera!

Texto introdutório (prefácio) do livro Bahia de todos os Santos (guia das ruas e dos mistérios da cidade de Salvador) de Jorge Amado.   

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